O aprendizado nas pequenas cenas do cotidiano
_ Oi, meu bem, o que faz aí sozinha? (Valquíria se dirige para uma idosa que se afasta e se dirige à sala de costura).
_ Eu queria costurar alguma coisa... ( Olívia, 75 anos, responde ).
_ Olha só, eu vou comprar um tecido agora pra dar um jeito na roupa do meu filho que vai dançar hoje à noite e precisa usar algo prateado, você me ajuda nessa empreitada? (Valquíria pergunta ).
_ Claro! ( Olívia responde com um sorriso imenso no rosto).
Um trio se forma para a atividade vespertina: um garoto dançarino de 10 anos, uma psicóloga de meia idade e uma idosa, compondo um quadro intergeracional distinto. Uma sala com uma máquina de costura os aguarda, assim como um tecido brilhante prateado comprado para o traje de dança do curioso menino.
Entretanto, um evidente descontentamento ocupa o olhar de Olívia ao perceber que suas mãos já não a obedeciam como outrora ao tentar cortar o tecido. Olívia tem sinais de Parkinson e, para uma mulher que sempre fora dinâmica, destemida e produtiva, a sensação de comandar o corpo e não receber a resposta desejada parece a paralisar.
A psicóloga percebe sua aflição e lhe propõe um desafio: Vou executar seu comando, você me dá as ordens e eu lhe ajudo. Vamos tentar? Olívia sorri e começam a tarefa: marcar o tecido com caneta usando a camiseta do garoto como molde, cortar, alinhavar, colocar alfinetes, experimentar no menino e, por último, passar a costura dupla na máquina.
Doroty toma o cuidado de lentificar o movimento ao máximo para garantir o melhor resultado possível (já que, costurar não é sua melhor habilidade, só tem noções, resquícios de um curso realizado 30 anos atrás). Porém, essa experiência a remete há 40 anos, quando sua mãe costurava para ela saias, vestidos e fantasias para seus bailes. A lembrança lhe abraça. Cada movimento a aproxima cada vez mais da imagem da mãe sentada na máquina, ora moldando, cortando, alinhavando, ou usando os alfinetes para passar a costura na máquina. Doroty experimenta uma doce nostalgia. E, com muita calma, vai exigindo sempre a aprovação de Olívia. Está indo bem, Olívia? É assim mesmo?
No que Olívia responde: Está sim, mas vá com menos força no acelerador da máquina, por favor!
Finalmente a blusa sai, um pouco torta de um lado, mas o espanto e a alegria são unânimes: os três comemoram a obra. Na verdade, a blusa simbolizou uma experiência repleta de significados: altruísmo por parte do garoto, resiliência por parte da idosa e flexibilidade por parte da psicóloga.
Essa experiência remeteu Doroty a um povo especial da comunidade Aymaras Urbanos de Pampajasi, que lida com o envelhecimento individualmente, conforme a perda singular de cada um. Quando a vista cansa e falha, é devido ao desgaste natural. Já vi muito, é a resposta! Há uma aceitação plena das mudanças e perdas corporais. Parece não haver nenhuma obsessão para paralisar o corpo e mantê-lo jovem eternamente.
E, fazendo uso desse conhecimento, Doroty diz a Olívia:
Você chegou a costurar 500 panos de prato em uma só semana. Fez inúmeras fantasias de carnaval. Bancou a vida trabalhando duro em uma máquina de costura. Não acha que já fez muito, Olívia? Ela nada responde, só olha surpresa e esboça o sorriso mais simpático do dia!
A costura permeou seu cotidiano por anos, é natural que se canse desse ato e que também sinta falta e que queira costurar vez ou outra. Mas é saudável compreender que, de uma forma ou de outra, um dia ou outro, ela vai ter de encarar suas limitações.
Olívia tem agora tempo. Tempo para os amigos e para a família. Mas nem sempre reconhece e sabe como usufruir dessa oportunidade.
Essa história nos mostra que há o tempo de trabalho e também o tempo de colheita. Mas nem sempre temos de ficar velhos para começar a escutar a vida e os amigos, ou equilibrar e ocupar nosso tempo de forma a ter amigos, cuidar da família e trabalhar.
O povo da cultura Aymara utiliza seu tempo com seus amigos e sua família. Reparte conhecimento. Trabalham duro a vida toda, mas também acreditam que não se ganha poder acumulando bens, mas, sim, repartindo conhecimento. A premissa desse povo é escutar los viejos (escutar os velhos). Suas memórias e suas histórias. E finaliza: conhecimento que não escutamos, perdemos.
(*) O encontro intergeracional acima ocorreu no início de novembro no Centro Dia Pasárgada - www.centrodia-pasargada.com.br; Sonia Fuentes é psicóloga e desenvolve atividades com os idosos no local).